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Nasci pela primeira vez numa pequena cidade de Moçambique há 54 anos atrás. Toda a gente nasce muitas vezes. Ficamos velhos apenas quando deixamos de renascer. Ao longo das minhas muitas vidas fui aprendendo o prazer em voltar a nascer.

Passei a infância e adolescência na Beira, uma cidade moçambicana localizada no centro do país. A cidade é costeira e eu sempre vivi junto ao mar. Essa vizinhança me deu o vício de sonhar viagens, para além do infinito.

Nas décadas de 60 e 70 Moçambique era uma colónia de Portugal. Isso queria dizer que não tínhamos existência própria. Não podíamos nascer enquanto nação livre e independente. E por isso, também não podíamos saber o que era a felicidade de nos sentirmos uma família grande e livre: a família dos moçambicanos. Para sermos quem éramos tínhamos de obter licença do governo português que ficava a milhares de quilómetros de distância. Para além disso, o regime que dominava Portugal (e, por isso, dominava também Moçambique) era uma ditadura fascista. Parece um simples palavrão. Mais do que isso, o fascismo era a ausência total de liberdade. Esse regime fez sofrer muita gente. A minha família sofreu por causa da repressão. Meu pai que era jornalista foi despedido e, por razões políticas, nós passámos momentos difíceis. Lembro-me de ver a minha mãe chorar e ela nos explicar a tristeza invocando razões que estavam para além do meu entendimento. Para mim bastava saber que havia, lá fora, algo que fazia a minha mãe chorar.

Foi assim que a vontade de mudar o mundo nasceu em mim. Quando tinha 15 anos eu já sabia que tinha que me juntar aos que lutavam para que houvesse uma sociedade mais justa. Para que nenhuma mãe mais tivesse que chorar.

Apesar das lágrimas, a minha infância foi muito feliz. De tal modo, que agora, sempre que escrevo é na minha meninice que descubro os principais materiais. Eu era um menino tímido, pouco falador e com pouca confiança em mim. A única coisa que me ajudava era a capacidade de sonhar. Sonhava mais do que vivia. E isso preocupava os meus pais que me encorajavam a sair, namorar, viver. Os meus dois irmãos eram mais capazes de fazer coisas, tinham um sentido prático mais apurado. Eu via, com alguma mágoa, como os meus pais os valorizavam pela ajuda que davam em casa. Os meus pais achavam que não valia a pena pedir-me ajuda: eu estragava, partia, perdia. Mas havia uma habilidade minha que contava: quando havia que contar histórias era eu quem era chamado. Quando havia que fazer rir a família era eu que entrava de serviço de tal modo que me aprimorei como uma espécie de palhaço da família. O amor pelas histórias nasceu-me assim. Daí até me apaixonar pelos livros, essa grande caixa de histórias, foi um pequeno passo.

Uma outra paixão nasceu nessa mesma ocasião: a paixão pela Natureza. Ainda muito menino, era eu que trazia os bichos lá para casa. Uma vizinha nossa, uma volumosa senhora que migrara das Ilhas Maurícias - a Madame Trindade - tinha um Jardim Zoológico particular. Eu passava tardes olhando os animais que ela tinha no grande quintal. E me afeiçoei a leopardos, manguços, ginetas, esquilos, macacos e tudo que era bicho. Creio que entendia, já então, que a minha linguagem humana não me bastava. Eu precisava aprender a falar as línguas dos animais e das plantas. E as minhas estadias no mato me ensinaram a ler silêncios e a entender que nada está vazio, nada está tão longe como pensamos.

Agora, sou feliz graças a essa infância que me deu um passaporte para entrar e sair da tristeza. Ainda hoje me olho a mim mesmo como uma criança que quer guardar a capacidade de se surpreender e ficar encantado com uma história. O mundo está ainda na sua infância. Há, por isso, que brincar com ele.

Mia Couto