Netescrit@ | Equipa | Colaboração | Contacta-nos |

Imagino que fosse difícil para os adultos entenderem que um menino de três anos pensasse, pensasse muito, pensasse sem parar. Era o que eu mais fazia nessa época. Meu lugar predileto para pensar era um degrau da escada que ligava os dois andares do apartamento. Às vezes, alguém pedia licença para subir ou descer, mas esta era uma interrupção efêmera, num instante eu empilhava meus pensamentos de novo, com a mesma habilidade que refazia minhas torres de cubos de madeira. Tudo o que eu pensava virava história, que eu escrevia em intermináveis folhas de papel. Ficava de fato assombrado quando os adultos chamavam minhas histórias de rabiscos. O que eu podia fazer se eles não sabiam ler?

Cláudio Fragata   Cláudio Fragata  

 

A televisão ainda era uma novidade no Brasil e por isso ocupava um lugar de destaque na sala de visitas. Talvez tenha sido esse o motivo de ter sido escolhida como cenário para a foto. Foi por esse aparelho que o mundo de Monteiro Lobato entrou na minha vida. Não perdia por nada os episódios de O Sítio do Pica-pau Amarelo. Muito antes de ler os livros de Lobato, a Emília já era minha amiga íntima graças à adaptação pioneira feita por Tatiana Belinky e Júlio Gouveia para a TV. Até hoje não sei onde eu começo e Emília termina. Jamais imaginaria que muitos anos depois, eu já adulto, encontraria a seguinte mensagem em minha secretária eletrônica: "Oi, Cláudio! Leio suas histórias na revista Recreio e quero dizer que você escreve do jeito que eu gosto!". Era Tatiana Belinky. Era Emília me abençoando. Todos sabem que Emília e Tatiana Belinky são a mesma pessoa.

Meu pai tinha um Studebaker 1952. Eu adorava quando saíamos rodando só eu e ele pelas ruas de São Paulo. Domingo de manhã era sagrado. Ele me punha no carro e íamos ao cinema para assistir aos desenhos de Tom & Jerry. Até hoje me lembro de suas risadas na sala escura e de sua mão na minha mão. Foi com ele que aprendi a delícia de rir em boa companhia. O Studebaker não me trouxe só motivos de alegrias. Um dia, um maluco avançou no sinal vermelho e meu pai precisou frear de súbito. Eu voei contra o painel do carro e cortei o canto do olho na chave do contato. O sangue espirrou por todo lado, manchando vidros e poltronas. Meu pai deixou o carro de portas abertas no meio da rua e saiu abraçado comigo em busca de socorro. A cicatriz desapareceu só há poucos anos. O contato daquele abraço não. Nesta foto, estou no colo dele. Os outros são minha mãe, meu irmão César e um primo, Luiz Roberto. Estamos em Santos. Ao fundo, as cabines de banho, um costume que não existe mais no Brasil. Santos era o máximo. Ficávamos no Grande Hotel. Eu gostava mais da arara que havia no jardim deslumbrante do que do mar. Gostava também dos potinhos de vidro com manteiga e geléia no café da manhã. Melhor que isso, só o colo do meu pai.

Cláudio Fragata   Cláudio Fragata  

 

Eu cresci aterrorizado pelo filme Marcelino, Pão e Vinho. Passava voando pelo crucifixo que minha mãe tinha sobre a cabeceira da cama, com medo de que o Cristo descesse da cruz para falar comigo. Felizmente, entrei no prumo quando descobri Lewis Carroll, Stevenson e Monteiro Lobato. Mesmo assim, minha mãe, que sem ser beata, até hoje faz suas orações à Nossa Senhora, achou que eu deveria fazer ao menos a primeira comunhão. Depois, eu que me decidisse pela fé a seguir. Quem me catequizou para a cerimônia foi Irmã Agatônica, que nós, meninos endiabrados, chamávamos de Irmã Água Tônica.

Eu estou bem feliz nesta fotografia tirada em meu primeiro ano de escola. É um dos meus raros sorrisos porque sempre odiei posar para fotos. A alegria se explica. Eu não via a hora de aprender a ler. Queria mergulhar nos livros de Lobato que me espreitavam da estante. Também para ler todos os gibis do mundo. Estava cansado de pedir ao meu irmão que fizesse isso por mim. Além do mais, eu sabia que ele inventava palavras que não estavam nos balões só para me amolar.

Cláudio Fragata   Cláudio Fragata  

 

Meu pai dizia que minha expressão nessa foto tinha algo de Truman Capote. Coincidência ou não, eu estava em meus anos rebeldes. Papai e eu tivemos muita dificuldade para nos entendermos e nos distanciamos por alguns anos. Uma década depois, já reconciliados, ele virava com rapidez a página do álbum que trazia essa foto. Sempre dizendo: "Não gosto de lembrar dessa expressão de Truman Capote que você tinha nessa época".

Eu adoro gatos. Por causa disso, Tatiana Belinky só me chama de Fra-Gato. Ao telefone, responde ao meu alô com um sinuoso miau. Eu vivo com quatro siameses: Olívia, Dinah, Sofia e Fellini. Este último foi abandonado num estacionamento com poucos dias de vida. Levei-o para casa e tive que amamentá-lo com mamadeira. Logo percebi que ele queria viver. Segurava a mamadeira com força usando as patinhas e sugava o leite de forma que podia ser ouvido à distância. Que grande lição de vida me deu! A foto mostra seus primeiros momentos em minha casa. Hoje é um gatão, que não desgruda de mim e lê em primeira mão as histórias que escrevo no computador.

Cláudio Fragata   Cláudio Fragata  

 

Às vezes penso que sou uma pessoa privilegiada. Faço o que mais gosto, inventar e escrever histórias. Tenho amigos maravilhosos com quem compartilho momentos preciosos dessa vida tão bela quanto curta. A foto não me deixa mentir. Aqui estou, ao lado de Tatiana Belinky e do ator Pedro Paulo Rangel, no lançamento de O Vôo Supersônico da Galinha Galatéia.

Cláudio Fragata